Conheça o desafio das escolas indígenas em educá-los na língua
portuguesa, no idioma da aldeia, na linguagem de gestuais própria da
tribo e na língua brasileira de sinais
Amarildo Inácio, índio da etnia caingangue, tem 15 anos e desde 2004
está vivendo uma experiência bastante rica:estudar de verdade.
Até então, a Escola Indígena de Educação Básica Cacique Vanhkre, em
Ipuaçu, a 511 quilômetros de Florianópolis, onde está matriculado desde a
1ª série, não tinha uma política de inclusão de alunos com deficiência.
Com surdez total em um ouvidoe parcial em outro, o garoto estava lá
fazendo número, sem aprender. Amarildo sempre tentou se comunicar com os
demais membros da aldeia, mas ninguém o entendia. Além de não conseguir
pronunciar bem as palavras, misturava dois idiomas - o português e o
caingangue. Seus gestos eram compreendidos por poucos e, durante muito
tempo, ele foi considerado um deficiente mental.
Há três anos,
a surdez do garoto e de outras sete crianças da tribo foi identificada,
levando a gerência regional da Secretaria de Educação de Santa Catarina
a implantar um programa pedagógico para atender às necessidades do
grupo. "Foi muito difícil estabelecer uma comunicação mínima com os
estudantes no início do processo. Primeiro, tive de conquistar a
confiança deles", conta Marisa Giroletti, pesquisadora na área de
processos inclusivos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
O
Ministério da Educação (MEC) não informa quantos dos 163 693 indígenas
matriculados na rede pública têm deficiência auditiva - entre os
não-índios são 15 mil. Sem uma política nacional para atendê-los, cada
comunidade encontra suas próprias soluções para levar esses estudantes a
avançar na aprendizagem. Em 2001, com a aprovação do Plano Nacional de
Educação, as escolas indígenas conseguiram garantir a identidade
cultural e linguística de suas populações por meio de um currículo
diferenciado. Das 2 323 escolas indígenas existentes no Brasil, 1 818 já
oferecem Educação bilíngue.
Preconceito cultural
A
inclusão de crianças com deficiência, um dos maiores e mais complexos
desafios nessa área, no entanto, está só começando, como mostra a
experiência da Escola Cacique Vanhkre. Lá, como em outras populações do
país, a dificuldade em colocar a criança deficiente estudando com as
demais encontra barreiras na própria família. "Os deficientes geralmente
são encarados como um impedimento à sobrevivência de um povo. O
trabalho da equipe pedagógica é imenso para convencer os pais a permitir
o convívio deles com outras pessoas da comunidade", explica o
antropólogo Giovani José da Silva, especialista em Educação Indígena, de
Campo Grande. No passado, era comum que, tão logo fosse detectada na
criança indígena alguma característica diferente das apresentadas pelo
restante do grupo, ela fosse abandonada e até morta. Ainda hoje, em
muitos casos, ela é afastada do convívio social e não estuda.
Vencida a barreira imposta pela família e pela cultura, e incluída a
criança na escola, o próximo passo é garantir a aprendizagem dela.
Amarildo esperou bastante tempo para que isso ocorresse. Imagine a
dificuldade enfrentada por seus professores para se comunicar com ele.
Como fazer com que um aluno assim aprenda de verdade e tenha os mesmos
direitos assegurados aos outros estudantes?
O desafio levou a
pesquisadora Marisa a aldeias caingangues. O objetivo dela era fazer com
que crianças e jovens conhecessem a língua brasileira de sinais
(Libras), já que não conseguiu identificar uma linguagem de gestos
própria naquele povo. "Com o passar do tempo, porém, percebi que havia
sinais compartilhados pelos surdos da comunidade. Nós é que precisávamos
conhecer o gestual para melhorar a comunicação e levar os surdos a
avançar na aprendizagem." Amarildo e seus colegas, portanto, tinham uma
maneira de se comunicar que precisava ser valorizada.
Essa
experiência está contida na pesquisa de mestrado de Marisa. Nela, é
identificado e registrado para fins educacionais o que se convencionou
chamar de sinais kaingang da aldeia (SKA), uma linguagem gestual e
visual que está em formação e pode se consolidar como língua. O
glossário já tem cerca de 50 termos, mas isso é apenas o início de uma
pesquisa sobre a comunicação local. A sobrevivência do SKA vai depender
de uma política lingüística que incentive a sua manutenção e das
condições sociais, como o contato entre os surdos. "É da natureza desse
tipo de expressão se misturar a outras e caminhar para uma consolidação
cada vez mais complexa ou morrer", explica a linguista Ronice Müller
Quadros, coordenadora do curso de libras da UFSC. Além de libras, há
apenas mais uma língua de sinais oficial no Brasil, a da comunidade
urubu-kaapor, que vive no sul do Maranhão.
Assim
que a equipe da Escola Cacique Vanhkre percebeu a existência de sinais
locais, Sonimara da Silva, professora bilíngue (Português e Libras),
teve grande preocupação em aprendê-los e incorporá-los à comunicação com
as crianças surdas. "Elas mesmas nos ensinam os gestuais. Passamos a
utilizá-los no dia-a-dia, paralelamente à Libras", explica. O
interessante é que a turma distingue perfeitamente a língua brasileira
de sinais e o SKA. Isso garante o diálogo com surdos dentro e fora da
aldeia.
A professora é também regente da sala especial - que tem
sete alunos e é multisseriada. Ela alfabetiza as classes em Português e
trabalha em parceria com um professor de caingangue (em que as crianças
também aprendem a ler e escrever) e com um instrutor de Libras.
Todos
sabem os sinais locais e mantêm contato permanente com Marisa, criando
estratégias para compartilhar o conhecimento. Amarildo já passou pela
sala especial e está concluindo a 6ª série. Existe uma corrente
favorável à frequência de surdos em salas regulares desde a Educação
Infantil e outra que sugere a matrícula deles em salas especiais ao
menos até se alfabetizarem. "Isso não é definido pelo Conselho Nacional
de Educação e não há consenso sobre a questão", explica Daniela Alonso,
selecionadora do Prêmio Victor Civita - Educador Nota 10 na área de
Educação inclusiva. Na Cacique Vanhkre, a experiência tem trazido
resultados positivos. "Antes da criação da sala especial e da sala de
recursos na escola, as crianças com deficiência auditiva vinham apenas
para passear", conta Sonimara. Hoje elas dominam dois idiomas, mais as
linguagens de sinais, e se saem muito bem quando passam para a 5ª
série.
Amarildo já escreve em caingangue e em português e se
destaca na turma ao lado de uma colega surda, Silvana Fragoso, de 17
anos. Os resultados dos dois são evidentes. Durante um projeto de
Ciências sobre ervas medicinais, eles foram aos arredores da escola
colher as plantas mencionadas em aula. A proposta deu oportunidade a
Amarildo e a Silvana de batizarem as hortaliças, para as quais não havia
sinais correspondentes em libras. Depois, em grupo com os demais
colegas, eles confeccionaram cartazes sobre os usos medicinais das
espécies e fizeram uma apresentação na feira cultural. "A turma toda,
pela convivência com os dois, já domina sinais suficientes para se
comunicar com eles", conta a professora.
A
experiência de Ipuaçu guarda semelhanças com a das aldeias bororó e
jaguapiru, na reserva de Panambizinho, em Dourados, a 225 quilômetros de
Campo Grande. Lá vivem índios guaranis-caiovás. Nessa região, porém, há
uma preocupação a mais na construção de uma escola inclusiva: a de que
os professores e intérpretes sejam índios da própria comunidade. Existem
hoje no município três ações paralelas de capacitação docente: um curso
de Libras para professores indígenas (que a partir de 2008 serão os
intérpretes nas escolas), a formação de uma profissional (que servirá
como multiplicadora) no curso a distância de Atendimento Educacional
Especializado oferecido pelo MEC e a participação de educadores da
comunidade na licenciatura indígena da Universidade Federal da Grande
Dourados, que também discute a inclusão em seu currículo. "A ideia é que
membros da comunidade atuem no processo educativo, inclusive no que diz
respeito à inclusão e no reconhecimento dos gestuais locais", diz Elza
Pedrozo, coordenadora de Educação especial do município.
Antes
que esses profissionais se formassem, porém, a Secretaria Municipal de
Educação iniciou, em 2006, o trabalho de inclusão de cinco surdos em
duas escolas: a EM Indígena Agustinho e a EM Indígena
Tengatuí-Marangatú. Para que o processo ocorresse a contento, a primeira
medida foi contratar intérpretes de Libras - já que ali não havia uma
língua de sinais local identificada.
Para aprimorar o
reconhecimento o registro dos "sinais caseiros" - termo usado no caso de
línguas emergentes -, a linguista Shirley Vilhalva trabalha no local.
"É fundamental que se considere essa forma de comunicação como um
elemento cultural, mesmo que ainda não se saiba o seu grau de
complexidade e elaboração dos signos", afirma a pesquisadora. O que está
em jogo nesse caso, de acordo com ela, é a identidade de um povo,
contida nas marcas típicas de sua expressão oral ou não.
Tanya
Felipe, professora da Universidade Estadual de Pernambuco e coordenadora
do Programa Nacional Interiorizando a Libras, ligado ao MEC, defende a
decisão tomada em Dourados e Ipuaçu. Para ela, antes de aprender
conteúdos do currículo, as crianças devem adquirir uma primeira forma de
expressão e, se não houver uma comunicação por sinais na comunidade em
que vivem, a Libras cumprirá esse papel. A questão é polêmica, mas o que
é ponto pacífico entre os especialistas é a necessidade de sistematizar
e incorporar os gestos criados pela população local no cotidiano,
legitimando essa forma de comunicação. "É importante que a língua de
sinais seja estimulada pelos intérpretes e professores da escola. As
crianças apoiam a utilização dessa expressão", afirma Ronice, da UFSC. A
valorização desse saber local, da identidade linguística e de sua
inclusão no currículo é o que garante a diversidade cultural das escolas
indígenas.
Libras não é a única
Há
cerca de 180 línguas e dialetos indígenas no Brasil. O guarani, por
exemplo, tem mais de 30 mil falantes, e outras, como o ianomami e o
caingangue, contam com mais de 5 mil usuários. A única língua indígena
de sinais reconhecida, porém, é a da comunidade urubu-kaapor, no sul do
Maranhão. O povo dessa localidade remota na região amazônica tem elevada
incidência de pessoas surdas (uma em cada 75) e desenvolveu uma forma
própria de comunicação por sinais que começou a ser estudada na década
de 1960 pelo pesquisador canadense James Kakumasu e em seguida pela
professora brasileira Lucinda Ferreira, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro.
Uma característica interessante desse caso é que toda a
comunidade domina os gestos, permitindo que exista a comunicação
fluente entre ouvintes e surdos. "Trata-se de uma língua com o uso
social de modo pleno", afirma Ayron Rodrigues, da Universidade de
Brasília. "Em uma aldeia de 60 pessoas, por exemplo, todos se comunicam
com as pessoas surdas. Elas não constituem
uma comunidade à parte." Mas, nas escolas, a inclusão das crianças com deficiência auditiva ainda caminha a passos lentos.
Não se tem notícias de outro caso no Brasil de uma comunicação análoga à
de sinais urubu-kaapor - também pelo fato de os estudos na área serem
muito recentes. Um primeiro passo, no entanto, foi dado com a criação do
Inventário Nacional de Diversidade Linguística, que será encabeçado
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O
projeto visa coordenar o estudo de diversas línguas minoritárias no país
- as de sinais, inclusive. É um trabalho e tanto, haja vista que a cada
duas semanas um idioma se extingue no mundo - segundo levantamento
feito pelo projeto Enduring Voices, da revista National Geographic -,
levando com ele histórias e saberes.
FONTE: http://revistaescola.abril.com.br/inclusao/educacao-especial/fim-isolamento-indios-surdos-424770.shtml